Voleibol

05 agosto 2024, 19h30

Hugo Gaspar

Hugo Gaspar

Chegou em 2010, com o grande objetivo de tornar o Clube hegemónico no voleibol nacional. Montados, com suor e sacrifício, os alicerces de um projeto de sucesso e em ascensão, celebrou a conquista de mais de duas dezenas de troféus. Catorze anos volvidos, Hugo Gaspar termina o seu trajeto de águia ao peito com o sentimento de dever cumprido. "Como está construído hoje em dia o Benfica, é para ganhar sempre", asseverou.

Foram 14 épocas a envergar o manto sagrado, 492 jogos realizados e 29 títulos celebrados – 27 nacionais e 2 regionais. Capitão da equipa de voleibol do Benfica, Hugo Gaspar despede-se do Clube, encerrando, aos 41 anos, o capítulo da "alta competição".

Em entrevista à rubrica Zona Mística, o oposto pentacampeão nacional fez um balanço sobre a caminhada de águia ao peito, no qual, entre outros temas, falou sobre os segredos do sucesso da equipa, os títulos e a ligação especial com os Benfiquistas.

"Agradecer aos adeptos que nos acompanharam nos últimos anos, em cada canto do país e a nível internacional. Já sabem que podem contar comigo", expressou.

Hugo Gaspar

ADEUS À ALTA COMPETIÇÃO

"Vou ser sincero, não sei se é o adeus definitivo ao desporto competitivo, porque ainda há várias formas de jogar voleibol em diferentes competições, ainda em alguns escalões. Não sei o que vou fazer, mas é verdade que, ao nível da alta competição e ao nível que joguei nestes últimos anos no Benfica, chegou ao fim."

SEGREDOS PARA SER UMA LENDA DO VOLEIBOL

"Trabalho, sem trabalho não se vai a lado nenhum, consistência, sem ser consistente também não se consegue, e muito foco nos objetivos que queria, naquilo que me propus em cada ano. Cada prémio, cada objetivo, cada Campeonato é um foco total à dedicação de alta competição. Só assim se consegue fazer uma carreira tão longa com os resultados que foram e com a expressão que tive ao longo dos últimos anos."

A ESCOLHA DO VOLEIBOL EM VEZ DO BASQUETEBOL

"O grande segredo foi que até aos 15 anos praticava todas as modalidades e mais algumas. Tudo o que havia na escola, desporto escolar, atividades fora, fazia qualquer modalidade. Isso deu-me capacidades físicas e técnicas para que, quando entrasse no voleibol, conseguisse desenrascar-me bastante bem. Escolhi o voleibol por mero acaso. Durante 15 dias treinava voleibol à tarde e basquetebol de manhã. Chegou a altura de escolher em qual das modalidades me iria federar, e a decisão pelo voleibol prendeu-se exclusivamente por ter sido mais bem recebido no balneário pelos meus colegas da equipa de voleibol do Sport Operário Marinhense."

Hugo Gaspar

CONCILIAR A MEDICINA COM O VOLEIBOL

"Gosto de transmitir aos jovens que é possível conciliar. Sou exemplo disso, tenho outros colegas de alta competição que também são. Temos de saber o que queremos. Abdiquei de uma carreira de clubes, a nível internacional, pela medicina. É difícil dizer que lamento, porque estou muito bem na vida a nível de medicina. Estou no ponto alto da minha carreira médica, mas, se fosse hoje, teria escolhido parar o curso de medicina e dedicar-me à atividade profissional a nível internacional, quando era mais jovem. Eram tempos diferentes. Hoje, é muito mais fácil viajar, emigrar a nível desportivo, existem muito mais clubes, o voleibol cresceu. Na altura, fomos 3/4 jogadores que saíram de Portugal. Já tinha os três anos mais difíceis do curso realizados. Quando o reitor me disse que, se cancelasse a matrícula, provavelmente não abria uma vaga para reentrar, assustei-me um pouco e tive de abdicar. Joguei na Sisley Treviso, a melhor equipa italiana na altura, ganhámos tudo, tinha contrato e custou-me dizer que tinha de voltar por causa dos estudos. Hoje, não teria feito essa escolha. Aconselho todos os miúdos que, caso queiram, apostem numa carreira internacional, enquanto puderem. É, se calhar, o que mais lamento. É difícil, mas é possível conciliar. Nos estágios, as horas de descanso não eram para dormir ou descansar, eram para estudar. Após os estudos, é a parte laboral. Nos últimos 14 anos conciliei a alta competição com o trabalho, e as responsabilidades ainda são maiores, porque tenho um dever para com os meus utentes e um grande dever para com os meus colegas. Só com grande organização e sacrifício é possível conciliar."

PAIXÃO PELA SELEÇÃO NACIONAL

"Fui para o Norte, para o Porto, que era onde a Seleção se concentrava. Custou, chorei muito. Na altura, não existiam telemóveis para estarmos em contacto com os pais ou com os amigos. Íamos às cabinas telefónicas, colocávamos as moedas, e lembro-me perfeitamente de telefonar aos meus pais a chorar e a dizer que queria ir para casa. Eram tempos diferentes. Essas dificuldades fizeram-me crescer, e cresci muito nesses anos. A nível internacional, tenho uma grande paixão, que é a Seleção Nacional. Uma das coisas que me dão mais prazer é jogar voleibol internacional, a nível de seleção, e mesmo no Benfica, a Liga dos Campeões e outras competições. Sinto que o nível ainda é mais alto."

Hugo Gaspar

HEGEMONIA NO VOLEIBOL

"Quando o recebi o convite para vir para o Benfica através do senhor [Rui] Mourinha e do professor [José] Jardim, traçámos um grande objetivo: ter a hegemonia do voleibol nacional, que o Benfica não tinha na altura. Lutava sempre pelas competições, mas não conseguia ser constante nas vitórias. Pertenci a esse grupo de trabalho que montou esse objetivo. Com todas as condições possíveis na altura, que já eram muito boas e foram melhorando nos últimos anos, houve uma grande aposta. Tínhamos de criar uma grande equipa, com identidade que se ligasse à modalidade, ao Clube e aos adeptos. Foi isso que, com o senhor Mourinha, com o professor Jardim, principalmente, e mais tarde com o Rui Guedes, quando foi convidado para ser team manager, que montámos. Convidei colegas meus a virem para cá, porque o objetivo era montar uma base forte de portugueses. É o sucesso que ainda estamos a beber desse planeamento e dessa grande aposta que existiu. O Benfica deu-nos as melhores condições do mundo. Digo francamente a toda a gente que se contam pelas mãos, se calhar, os clubes que dão as condições que o Benfica hoje dá aos seus atletas e profissionais. Temos condições que basicamente quase ninguém tem. Isso é 50% do trabalho, e temos de agradecer por nos darem essas condições. Devemos muito ao que nos foi dado nestes anos. Nos anos em que cá estive não falhou nada e foi sempre em crescendo. Hoje, há condições que quando comecei não tinha."

RUI MOURINHA, UMA FIGURA MARCANTE NO VOLEIBOL

"Entrei neste projeto a convite do senhor Mourinha e do professor Jardim. Convivi diariamente com eles nos primeiros anos. Sofremos muito, porque o percurso não foi só de êxitos. Também tivemos derrotas e crescemos com essas derrotas. Tínhamos um grande objetivo e cumprimos. Quando o senhor Mourinha nos deixou, foi difícil para todos. O senhor Mourinha, juntamente com o professor Jardim, já estava a montar os alicerces para o que eu depois, juntamente com mais 2/3 colegas, ajudámos a construir."

Hugo Gaspar

O PRIMEIRO CAMPEONATO EM 2013 COMO O MAIS RELEVANTE

"Não vivo para os troféus, vivo porque sou competitivo. Mas o primeiro é sempre muito satisfatório, sem dúvida."

CHALLENGE CUP 2015: O TROFÉU QUE FALTOU

"Custou, sem dúvida que custou. Ainda para mais num ano em que só ficou a faltar ganhar essa competição. Ganhámos tudo. Aqui, chegámos a essa finalíssima, e foi por pouco. Encontrámos uma jovem equipa com grandes valores. As pessoas podem achar que não, ao ouvirem falar do nome da equipa com quem nós perdemos, mas eram jovens valores que ainda hoje são grandes jogadores de voleibol, atenção. Custou. Era o culminar de um grande projeto, e não conseguimos. Ainda para mais em nossa casa. Tivemos a oportunidade de ter aqui, em nossa casa, essa finalíssima, e não conseguimos."

A LIGAÇÃO ESPECIAL DO VOLEIBOL AOS ADEPTOS

"Concordo. Acho que, se há modalidade que se liga aos adeptos do Benfica, é o voleibol. Os adeptos têm a noção de que nós gostamos de nos ligar a eles. Conversamos, vamos às bancadas, convidamo-los para irem ver treinos. Estamos ali a tomar o pequeno-almoço, e eles estão lá, a conversar connosco; estamos a lanchar, e eles estão connosco. O voleibol sempre se deu muito bem com os adeptos. Chamamo-los muitas vezes para virem ao nosso pavilhão. Há sempre um adepto benfiquista em qualquer cidade em que joguemos. Há sempre um adepto benfiquista, encontrávamos sempre. É óbvio que a evolução das redes sociais tornou mais fácil esta evolução e esta transmissão. Óbvio que as vitórias ajudaram, atenção. Temos a sorte de ser uma equipa muito vitoriosa, e isso ajuda. Infelizmente, nas modalidades que não conseguem ser tão vitoriosas, o adepto benfiquista também é ‘tramado’. Quando as coisas correm mal, também são os primeiros a pôr o pé em cima, temos de ser sinceros relativamente a isso. Nós temos esta relação porque temos sido muito consistentes na vitória. Isso demonstra-se naqueles troféus todos que estão ali atrás."

Hugo Gaspar

PAPEL DE CAPITÃO

"O papel de um capitão de equipa, às vezes, tem de se notar mais nos maus momentos. E foram muitas vezes que tive de reunir a equipa no balneário. 'Hoje não há treino, vamos reunir-nos, que temos de conversar aqui um bocadinho.' No hotel, em estágio: 'Vamos concentrar-nos todos num quarto e conversar um bocadinho sobre o que estamos a fazer e o que devemos fazer.' Existem estes momentos e, depois, saber partilhar essa liderança de balneário com todos. Ajudar a que todos tenham o seu papel e a sua função na equipa. Acho que é importante todos terem uma noção. As tarefas e as competências de um capitão, no fim, não podem ficar numa só pessoa. O capitão é um gestor, tem de ser capaz de delegar e, mesmo sem eles terem a noção disso, deixar certas atividades: 'Olha, tu é que fazes.' Por exemplo, eu, redes sociais, não tenho. Não tenho Instagram, não tenho Facebook, não tenho nada. Não me preocupava em promover-me ao nível de redes sociais. Tenho outros colegas que são muito melhores do que eu. 'Olha, tu é que vais à entrevista, porque tens jeito para isso. Faz tu. Tu é que fazes aquele vídeo.' Não me importava minimamente com isso. Às vezes, põem-se: 'Gaspar, tu é que és o capitão e nunca vais.' E eu: 'Não me importo, não é isso que quero. Não é isso. Não é para isso que eu aqui estou.' Mas era o primeiro, depois, quando fosse necessário, a apontar o dedo: 'Meninos, atenção. Vamos lá, que isso não pode ser assim.' Então, nessa perspetiva, acho que a parte de capitão tem de passar por todos. Todos têm de ter o seu papel, e eu gosto mais de gerir essa parte nos bastidores e não concentrar todas as atividades, ou ser aquele durão que chega, que está sempre a dar aqueles sermões e aqueles discursos de motivação. Não sou esse, nunca fui, mas sou aquele que, quando é momento de exigir, exige. E sou aquele que tenta dar o exemplo. Se eu não der o exemplo, também, aí, partimos tudo. Parte a corda. Acho que, juntamente com muitos dos colegas que viveram durante muitos anos, o nosso segredo foi que mantivemos um grupo muito constante. Conseguimos conciliar e viver bem com esta atividade. Foi um sucesso. É um sucesso. Tenho de dizer, está ali atrás, não posso dizer outra coisa."

Hugo Gaspar

ESTRUTURA PARA GANHAR SEMPRE

"Montámos os alicerces, eles foram bem montados, e por isso é que tivemos estes anos de sucesso. E quem montou esta estrutura toda montou-a bem, agora é só não deixar ruir a casa. Se não deixarem ruir a casa, sem dúvida nenhuma que existirão colegas meus que irão ganhar tantos ou mais títulos do que eu nos anos futuros. Como está construído hoje em dia o Benfica, é para ganhar sempre. Ninguém tem a estrutura que nós temos aqui. Acho que existirão ainda esses atletas que vão bater todos os possíveis recordes que eu possa ter, número de troféus e número de vezes que levantei uma taça. Acredito que isso ainda possa vir a ser ultrapassado. Mas que fiz parte daqueles que construíram a base, isso ninguém me tira. Ninguém me tira, que foi muito suor que aqui foi colocado."

A NECESSIDADE DE FAZER UM LUTO

"Isso é a pergunta dos milhões. Nem eu sei ainda. Se formos a ver, se calhar, daqui a 15 dias estávamos a começar uma nova época. Eu vou ser sincero, neste momento sinto-me na minha melhor forma de sempre. Sou sincero. Se fosse para começar daqui a 15 dias, estava ótimo. Acho que treinei mais desde que acabou a época em relação aos últimos anos. Tenho feito coisas mais diferentes, não tenho aquela responsabilidade. Tenho feito coisas diferentes, e isso tem-me dado uma capacidade diferente. Agora, se vou sentir falta? Não sei... não sei. Sinceramente, não sei. É provável que sinta, também sou sincero, porque foram muitos anos, mas não sei como é que vou reagir. Acho que vou ter de fazer um luto. Vai custar-me... Vai custar-me, acho que vou ter de fazer um luto, e quem não o fizer é porque não gostava daquilo que fazia. Acho que tem de se fazer um luto. Eu vou ter de fazer um luto do Benfica, um luto do voleibol. Provavelmente, não me vão ver aí a assistir a jogos. Não me vão ver. Conhecendo-me como sou, dificilmente me vão ver aí a ver jogos de voleibol tão depressa. A não ser que a minha filha me implore, coitada, que ela andou a beber, durante anos e anos, Benfica. Está ali de claque, e eu, de repente, deixar de ir aos jogos... Não sei como vou gerir. É aquilo que eu digo, sou uma pessoa muito competitiva, sou de competição. Provavelmente vou ter de arranjar alguma coisa para fazer."

Hugo Gaspar

A FAMÍLIA COMO PILAR

"Isto não é um projeto do Hugo Gaspar. É um projeto da família. Vim para aqui com a minha mulher, a Francisca, e foi graças a ela que nos aguentámos aqui tantos anos. A verdade é que passava pouco tempo em casa. Entre o trabalho, entre os estágios e os treinos, a Francisca teve de aguentar muito, e o pilar principal foi ela. Ela ainda tinha de aturar todas as amarguras que levamos daqui, todos os dias, para casa. As horas em que está sozinha, as horas em que chegamos a casa e ainda vimos chateados dos treinos, ou dos jogos, ou da competição, ou qualquer outra coisa. Ela veio comigo para Lisboa, abraçando este projeto Benfica desde o início, e estamos cá em Lisboa já há estes anos todos. Depois construímos a nossa família, a Madalena e o Francisco, que bebem Benfica, como seria de esperar, e vibraram. Era um dos meus objetivos manter-me ativo para eles me verem em atividade, e isso aconteceu. São fervorosos hoje em dia. Tanto me vai custar a mim como vai custar aos meus filhos."

GRUPO COESO E HOMOGÉNEO

"Passa pelo resto. Nós temos uma grande família aqui, sempre tivemos. Este grupo de trabalho que esteve nos últimos 10 anos, digamos assim, foi um grupo muito coeso, muito homogéneo, mais ou menos na mesma base de idades, no mesmo momento familiar, com filhos pequenos, e isso ajuda. Estávamos cá com o mesmo objetivo, no mesmo momento de vida, e o convívio entre as famílias, entre os filhos, isso também facilita e ajuda a criar a união. Tem sido um dos segredos."

Hugo Gaspar

MENSAGEM PARA OS JOVENS E PARA OS BENFIQUISTAS

"Mensagem para os jovens é aquilo que lhes digo sempre. Se gostam da atividade que fazem, neste caso, se gostarem de jogar voleibol, apostem. Hoje em dia, as portas estão abertas para fazerem carreiras internacionais. É possível apostar no desporto. Se calhar, aqui em Portugal nem tanto, mas a nível internacional é. Têm é de apostar, têm de se dedicar. É possível conciliar os estudos com a atividade desportiva, também o é, basta quererem. É difícil? É, mas consegue-se. Para os Benfiquistas, agradecer por tudo aquilo que o Benfica me deu, porque me deu as melhores condições do mundo para a prática do voleibol. Que deu. Agradecer aos adeptos que nos acompanharam nos últimos anos, em cada canto do país e a nível internacional. Já sabem que podem contar comigo, quer seja para a parte desportiva, quer seja para qualquer conselho médico. Tantos e quantos adeptos me apanham na rua e me pedem conselhos médicos. Começa em conversa de voleibol e depois vai para a parte médica. Podem contar sempre comigo, eu cá estarei. Não faço a mínima ideia do que vou fazer, sou sincero, não sou pessoa de fazer grandes planos. Toda a gente me pergunta: 'O que é que vais fazer agora?' Não faço a mínima ideia. Sou sincero. Acabou a carreira? Acho que sim, que acabou, acho que sim. Em princípio. Vamos ver. Alguma coisa se faz sempre. E vamos ver."

Texto: Redação
Fotos: Arquivo / SL Benfica
Última atualização: 5 de agosto de 2024

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