Râguebi

11 outubro 2024, 10h11

Reportagem 100 anos râguebi

Antigo atleta António Santos

CENTENÁRIO

Paulo de Carvalho, um famoso adepto benfiquista, no seu reportório musical tem inserido um conhecido tema em que uma das passagens diz: "10 anos é muito tempo". Se 10 anos é muito tempo, o que dizer de 100? É precisamente há 100 anos que a modalidade de râguebi é praticada de forma interrupta no Sport Lisboa e Benfica. O dia 11 de outubro de 1924 ficará gravado como aquele em que aconteceu o primeiro treino deste desporto no Clube.

Este centenário de um dos desportos mais praticados em todo o mundo foi o mote para uma viagem por toda a sua história neste clube jovial. No Museu Benfica – Cosme Damião, no Departamento de Reserva, Conservação e Restauro e, ainda, no Centro de Documentação e Informação está presente um sem-fim de memórias físicas que o râguebi encarnado foi colecionando ao longo dos últimos 100 anos. Ninguém melhor do que António Santos, antigo jogador e um verdadeiro arquivo de histórias – e não só, mas já lá vamos – do râguebi do Benfica, para ser o cicerone nesta viagem, que teve como ponto de partida… o ponto de chegada da nossa história, ou seja, o Museu Benfica – Cosme Damião.

Reportagem 100 anos râguebi

António Santos começou a praticar râguebi no Benfica nos anos 70 do século passado. Mais tarde, regressou ao Clube

48 PEÇAS EM EXPOSIÇÃO

Logo à entrada, fomos recebidos por Sandra Lopes, coordenadora da comunicação do Museu – onde estão 48 artigos referentes à modalidade em exposição –, que prontamente indicou que nesta sala de troféus estão "todos os títulos nacionais e internacionais do râguebi".

Um dos grandes destaques da exposição da modalidade são as 4 Taças Ibéricas vencidas pelo Benfica, na vertente masculina, que se encontram junto das restantes conquistas europeias das modalidades do Clube. Após se saber onde estão posicionadas as Taças Ibéricas, faltava então descortinar como é que foram lá parar, ou, melhor dizendo, como é que o Benfica as conquistou. Foi isso que António Santos, que se apresentou como um orgulhoso "reformado" que "fugiu da cidade de Lisboa para o Alentejo", nos contou.

"No final dos anos 60, as federações portuguesa e espanhola decidiram implementar o Troféu Ibérico. Nos primeiros anos era disputado alternadamente, ora num país, ora no outro. O 1.º classificado do Campeonato de Portugal jogava frente ao 2.º de Espanha, e o 1.º de Espanha, com o 2.º de Portugal. Até 1971, os portugueses nunca ganharam o troféu. Nesse ano, houve uma forte aposta da equipa técnica do Benfica, na altura liderada pelo doutor Pedro Cabrita, e o Benfica foi a primeira equipa [portuguesa] a conquistar o Troféu Ibérico. Foi a Madrid, e ganhou os dois jogos. Nessa altura, acabou-se o Troféu Ibérico… No início dos anos 80, apareceu a Taça Ibérica, e o Benfica ganhou em 1986, 1988 e em 2001", recordou.

DA SALA DE TROFÉUS PARA A "OFICINA DE TROFÉUS"

O Departamento de Reserva, Conservação e Restauro do Sport Lisboa e Benfica é uma espécie de espaço de culto de todos os objetos que fizeram e fazem a história do Clube. Por isso, era um ponto de passagem indispensável, ou nele não estivessem acervados 371 artefactos referentes ao râguebi encarnado. À nossa espera estava Ana Nascimento, supervisora de Conservação Preventiva do Departamento de Reserva, Conservação e Restauro do Benfica, que explicou quais as preciosidades guardadas no espaço.

"Basicamente, todas aquelas que não estão expostas no Museu. Nestas ocasiões e noutras efemérides que vão surgindo, temos a oportunidade de comunicar estes objetos. Pois não servem só para estar guardados, servem precisamente para contar a história do Clube e da modalidade. A coleção do Benfica cresce todos os anos, com 400/500 peças novas. Já vamos pedindo que o nosso espaço vá sendo ampliado", observou.

Com um acervo muitíssimo vasto, seria sempre complicado selecionar meia dúzia de artigos para serem mostrados aos meios do Clube, mas pode dizer-se que esse desafio foi superado. Para dar ainda mais vida às peças em exposição, António Santos fez um acompanhamento histórico das mesmas.

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UM SÉCULO EM CINCO OBJETOS

A Taça Aníbal de Matos, de 1,75 metros, é o maior troféu do acervo do Clube. Quem dá nome à peça é um antigo atleta do Benfica, e um dos jogadores que mais anos estiveram ligados ao Clube.

"No final da carreira resolveu instituir esta taça, que seria disputada aquando do Torneio de Abertura. A taça ficaria para a equipa que conseguisse conquistar o torneio cinco vezes alternadas ou três vezes seguidas. O Benfica venceu em 1970, 1971 e 1972. A equipa de 1972 tinha por base a que havia sido campeã ibérica. Tinha o capitão de equipa, que no râguebi é uma figura muito emblemática, e era o José Gaspar Ramos. Tinha atletas como o Carlos Nobre e o Albertino Minhoto", contou.

Presente estava também o galhardete mais antigo da secção, datado de 1936: "É de uma equipa francesa, num dos primeiros jogos internacionais."

O adereço que mais estranheza causou foi uma gravata, e a mesma estava lá em dose tripla. A razão foi rapidamente e de forma simples explicada por António Santos: "É uma tradição anglo-saxónica, e a grande coleção que aqui temos é referente aos anos 80 e 90 do século passado. Houve muitas equipas inglesas que vinham na altura da Páscoa a Portugal, e, como tradição, os jogadores e os treinadores trocavam de gravatas. Normalmente, os jogadores davam-nas à secção para ficarem expostas."

Mais ao lado, podemos ver uma salva de prata referente "a um dos primeiros troféus ibéricos de juniores que o Benfica venceu".

"Nos anos 90, o Benfica foi o melhor clube em termos de formação. Conquistou várias Taças Ibéricas, esta salva foi oferta de um clube espanhol", contou António Santos.

De um simbolismo incalculável são a camisola usada por Carlos Nobre na conquista do Troféu Ibérico de 1970/71, e a bola do jogo decisivo.

"Consegui convencer a filha, a Sofia [também ela atleta do râguebi encarnado], a doá-la ao Museu, pois faz parte da maior conquista da modalidade do Benfica e, talvez, do râguebi português. Para mim, Carlos Nobre – a par com João Queimado – é a maior figura do râguebi do Benfica. Além de um atleta de eleição, foi presidente da secção, foi treinador…", lembrou o antigo atleta do Clube.

Presente está, também, uma bola dos anos 90, para se ter uma ideia da sua evolução. "Na altura em que jogava [anos 70 e 80], eram muito escorregadias", observou António Santos.

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No Museu Benfica – Cosme Damião existe uma vitrina onde estão expostas as 4 Taças Ibéricas ganhas pelo Clube

UMA DOCUMENTAÇÃO (QUASE) INFINITA

Todos os grandes feitos e marcos merecem ficar registados, seja em texto ou imagem. No Benfica, essa missão está a cargo do Centro de Documentação e Informação, para que nada passe ao lado da história. Filipa Carvalho, supervisora, deu-nos a conhecer uma parte ínfima das notícias que marcaram o caminho da modalidade no Benfica, com destaque para a aparição n.º 1, mas não só…

"Temos o anúncio do primeiro treino, que foi no dia 11 de outubro de 1924. É a partir daqui que o râguebi começa a ser praticado e incentivado dentro do Clube", explicou.

Além de fotografias e de artigos em jornais, o acervo encarnado tem também muitos "currículos desportivos" de atletas, além de muitos outros documentos históricos. Faltava então saber como é que era possível o Clube possuir tanta documentação…

"Alguma tem feito parte do Benfica desde sempre, que com o tratamento que fazemos atualmente conseguimos esterilizar e recuperar informação. Depois, uma grande percentagem é graças a doações e a transferências que nos vão sendo feitas", explicou.

E é na parte das doações que António Santos volta a entrar em campo. "Tem-nos dado uma mediação fundamental", confessou Filipa Carvalho.

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AO SERVIÇO DO SLB E DA MODALIDADE

Era então hora de perceber como é que nasceu a ligação de António Santos com o Clube.

"Nos anos 70, tinha um vizinho que jogava râguebi no Benfica, trouxe-me, fiz dois treinos, e, como havia falta de jogadores, fiz logo o primeiro jogo. Levei uma sova terrível… mas continuei até final dos anos 80, início dos anos 90. Parei, devido ao casamento, às filhas, e ao começar a trabalhar. Divorciei-me e regressei em 2010", contou de forma bem-humorada.

É na altura em que volta 'ao ativo' que começa a saga de recuperar documentação para o Clube.

"Nessa altura tive como objetivo salvaguardar um bocadinho a história, porque com a mudança de estádio tinham-se perdido algumas coisas. Andei por armazéns de antigos atletas a pescar taças, equipamentos e outras coisas. Também estive sempre ligado ao râguebi enquanto fotógrafo. E as coisas começaram por aí… Depois, por gozo, sempre me deu gozo procurar, mais do que ter as coisas. Damos ao râguebi sem querer nada em troca, porque os valores que estão inerentes à prática da modalidade são qualquer coisa…", confessou.

Também na vertente feminina António Santos está envolvido, muito por culpa do seu saudoso amigo Carlos Nobre.

"Quando voltei ao râguebi, o Carlos era o diretor da equipa feminina, já estava com alguma idade, comecei a ajudá-lo, e depois ele perguntou se queria ficar com a equipa feminina. Revi na equipa delas o espírito da minha época, e fiquei durante alguns anos como diretor de equipa", contou.

Era o fim da nossa viagem guiada ao centenário do râguebi no Sport Lisboa e Benfica. A colaboração de António Santos deu, sem dúvidas, uma vida completamente diferente a cada troféu, a cada fotografia, a cada documento. Uma prova de que os portadores da mística do Clube, seja qual for a modalidade, são verdadeiros portais temporais, que fazem compreender mais e melhor a dimensão do Benfica.

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"Temos uma estrutura e um conjunto de condições que mais ninguém tem"

Rodrigo Alves

Membro da equipa que, em 2001, conquistou a última Taça Ibérica para o Clube, Rodrigo Alves, hoje coordenador do râguebi do Benfica, ficou com a missão de falar sobre o presente e o futuro da modalidade na Luz. Porém, antes de abordar os desafios que se seguem, contou como é que o râguebi chegou ao Benfica.

"O râguebi vem para Portugal através dos ingleses. O Sporting começou com a modalidade, o Benfica não podia ficar para trás e, em 1924, iniciou-se no râguebi", explicou, antes de apresentar a sua visão de como é que o Clube se manteve sempre de forma interrupta na modalidade: "Houve muita resiliência – que é uma característica muito forte do râguebi – e dedicação dos vários jogadores que vestiram esta camisola. Estamos a falar de cerca de 3000 atletas em todos os escalões. Muita resiliência que levou a que nunca tenhamos parado com a modalidade."

Apesar de muitas dificuldades ao longo deste século, o Benfica continua a ser um dos clubes mais titulados do râguebi português. Nos últimos anos, "tem havido um grande esforço por parte da direção em fazer regressar o Benfica aos grandes palcos e às grandes decisões", salientou Rodrigo Alves.

"Temos uma estrutura e um conjunto de condições que mais ninguém tem – nem a federação –, e, portanto, criámos um ADN mais profissional. Não deu ainda os resultados que pretendemos, porque ficámos pelas meias-finais nas competições. Há uma característica no râguebi que é os jogadores não mudarem de clube. Há essa dificuldade, mas nós temos conseguido atrair jogadores de outro nível, devido às condições que podemos disponibilizar. Além de formar em casa – a formação será sempre a base –, o nosso caminho é atrair jogadores portugueses para o Benfica, e obter melhores resultados", observou.

Na hora de confessar os desejos para a próxima centena de anos, Rodrigo Alves foi pragmático: "Que o râguebi do Benfica exista daqui a 100 anos. Que existam pessoas com amor à modalidade e ao Clube, que permitam a continuidade por muitos e bons anos."

Artigo publicado na edição de 11 de outubro do jornal O Benfica

Texto: João André Silva
Fotos: João Paulo Trindade / SL Benfica
Última atualização: 11 de outubro de 2024

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