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Reportagem
13 novembro 2024, 20h00
O pai Fernando Varela com o filho Gustavo Varela
No mundo do futebol, raramente vemos algo tão pessoal e íntimo como um jogo entre filho e pai. É um duelo que transcende as quatro linhas.
"Com certeza foi o jogo mais importante da minha vida, o jogo mais especial. Olhando para trás, não estava à espera de que isto acontecesse, fruto do talento e do trabalho que ele fez durante este longo período. Saio com a minha carreira feita e muito feliz, realizado, sobretudo por este momento único", revela Fernando Varela, defesa-central cabo-verdiano que, aos 36 anos, está pronto para pendurar as chuteiras no final da temporada.
Se de um lado estava um veterano experiente, do outro surgia Gustavo Varela, que, aos 19 anos, no eixo do ataque dos encarnados, dá os primeiros passos como sénior.
"Eu nunca pensei em jogar contra o meu pai, mas, sim, com o meu pai. Agora isto aconteceu, e é um dia muito feliz. É um dia que nunca mais vamos esquecer. É um início muito bom jogar com o meu pai", reforçou o jovem, em entrevista à BTV, lado a lado com o progenitor.
COMPETIÇÃO E CUMPLICIDADE
Ambos tentaram manter a normalidade nos dias que antecederam o jogo, mas a tensão emocional era inegável. A competitividade, característica de ambos, deixou claro que não haveria "facilidades" dentro de campo, mas, ao mesmo tempo, ali, o respeito e os laços familiares deveriam sempre prevalecer.
"Foi uma semana onde tentámos não tocar muito no assunto, não pôr pressão em cima do jogo, que já tinha essa pressão emocional. Foi uma semana tranquila, tentámos desfrutar, falando um com o outro, sabendo o que íamos fazer, tentando dar o nosso máximo, e não deixando que houvesse zunzuns de que íamos entrar em campo e íamos facilitar um ao outro. A nossa amizade, a nossa aliança dentro de casa é tão grande, que vemos isto de uma forma natural e normal", explicou Fernando Varela.
Gustavo sentia também o peso emocional da partida, mas a sua principal preocupação era garantir que o jogo se desenrolasse da maneira mais natural possível. "Eu acho que foi um bocadinho diferente. Como somos os dois competidores, estávamos sempre naquela… Olhávamos para o outro e lembrávamo-nos logo do jogo. Eu acho que é isso. Quando o meu pai olhava para mim, eu olhava para ele, a primeira coisa que me vinha à cabeça acho que era 'vamos jogar um contra o outro no fim de semana'. Foi um bocadinho diferente por sermos competitivos", argumentou o camisola 89 do Benfica B.
OS 90 MINUTOS
Estavam 3 pontos em jogo. A cada lance mais disputado, como quando o pai tentava desarmar o filho, não havia como fugir aos laços de sangue.
"Há momentos, quando ele tem a bola, em que tu pensas 'este momento não é para dar aquela entrada que, se fosse um adversário que tu não conhecesses, se calhar davas'. Sabes que podes, num lance de infortúnio, se calhar, lesioná-lo, e não era o que queríamos. Queríamos era desfrutar do jogo. Ambos, como ele disse, somos competitivos, íamos dar o nosso máximo, mas nunca passando os limites da agressividade. Isso era onde eu tinha de estar mais concentrado no jogo, era saber que os lances que ia dividir, tinha de dividi-los de maneira leal, não ir de forma a aleijar, ou que fosse um lance fruto de uma entrada perigosa", explicou Fernando Varela, logo corroborado pelo filho.
"Quando eles construíam, o meu pai tinha a bola, e eu tinha de pressionar. Ia sempre com mais receio para não dar aquela pisadela, para não o aleijar, porque não é esse o nosso objetivo. O nosso objetivo era começar o jogo bem, acabar o jogo bem, e depois, no final, desfrutar", afiançou Gustavo.
DIGNIFICAR O EMBLEMA, NÃO ESQUECENDO OS LAÇOS
Respeitar a camisola é um princípio que se baseia em valorizar não apenas a equipa, mas também a história e a tradição do clube. E foi isso que pai e filho tentaram fazer, não esquecendo, no entanto, os laços que os unem.
"Estamos sempre em campo a dignificar a camisola que vestimos, o símbolo que temos ao peito, e esse era o nosso foco, entrar em campo e dar o máximo pelo clube que representamos, sempre pensando que tenho ao lado o meu filho. São emoções muito íntimas, muito nossas, que sentimos, mas não conseguimos explicar, porque são momentos que nunca pensaste que iam acontecer… e acabas por estar realizado, superfeliz e tentas abstrair-te de tudo que é o jogo de futebol, mas há momentos em que não dá para deixar isso de parte", explicitou o jogador do Alverca.
"Tentámos sempre ser profissionais, eu acho que também tentámos provar um ao outro que conseguíamos. Conseguimos ir além da amizade e ser profissionais, dar o nosso máximo para dignificar a nossa camisola. Foi isso no jogo inteiro. Tentámos disputar todos os lances, mesmo quando foi um com o outro, no máximo, mas não a aleijar", prosseguiu Gustavo Varela.
PRIMEIRO CONTACTO COM OS RELVADOS
Para muitos jovens jogadores, o primeiro contacto com o desporto acontece ainda na infância, muitas vezes por influência dos pais. E foi isso mesmo que aconteceu com Gustavo Varela, que nasceu quando o pai tinha apenas 17 anos. Momentos "difíceis" para um adolescente, recorda Fernando Varela, que levava o filho para os treinos por não ter com quem o deixar.
"O Gustavo desde sempre está ligado ao futebol porque, como sabem, fui pai cedo. Eu, como toda a gente, trabalhava lá em casa, e ele tinha de ficar comigo. Eu levava-o para os treinos de manhã, e, como tínhamos espaço nas zonas de lazer e de pequeno-almoço, ele vinha sempre comigo. Desde cedo, teve contacto com o futebol. Lembro-me muito bem de estarmos em reunião dentro de campo, depois de um jogo, a falar sobre o que tinha acontecido, e ele vem com uma bola de futebol e entra pela reunião, e o treinador, que era o Tulipa, a olhar para mim e a dizer: 'E agora o que é que fazemos?' Toda a gente começa a rir, e eu digo: 'Míster, tenha compreensão porque, como sabe, é difícil deixá-lo sozinho em casa.' Desde cedo que ele teve esse contacto com a bola, mas, a partir do momento em que veio para o Benfica, senti a diferença que isso podia fazer na carreira dele. Tem evoluído e trabalhado bastante, a cada dia que passa está melhor. Tem assimilado todo o processo para se tornar um jogador profissional a sério, e isso deixa-me muito orgulhoso, ver os passos que tem dado e que ainda pode dar", confessou Fernando Varela.
PAI, UM MODELO A SEGUIR
Numa conversa carregada de emoção, Gustavo Varela abriu o coração ao falar sobre a importância da figura paterna na sua trajetória no futebol, revelando como os conselhos e o exemplo do atleta de 36 anos foram fundamentais para o seu desenvolvimento.
"As diferenças posicionais até ajudam um bocadinho. No final dos jogos, e desde cedo, o meu pai ajudava-me e ajuda-me a posicionar-me melhor, a ser melhor com a defesa, como ganhar melhor os lances. Sempre tentei ser igual ao meu pai. Por exemplo, ele sempre foi forte e trabalhador, e eu sempre tentei ser igual", reconheceu Gustavo Varela, deixando o pai emocionado.
"É para isto que tu és pai. Ver o teu filho falar assim de ti é um orgulho enorme. Isto é o mais importante. Tanto ele como os irmãos falarem assim de mim é o mais importante. E tu sabes que fizeste as coisas certas. Vê-lo crescer, vê-lo num grande clube, sabendo que ele tem sempre os pés no chão, que se mantém fiel ao que é e ao que eu lhe tentei passar, isso é muito importante, e sinto muito orgulho em ouvir estas palavras", confessou.
DO CAMPO PARA A VIDA
Fernando Varela foi pai muito jovem, com apenas 17 anos. Um marco importante, que exige maturidade e responsabilidade, e que pode, muitas vezes, transformar a trajetória de vida, ainda para mais quando se trata de um adolescente.
"Sabia que tinha de trabalhar mais do que os outros, sabia que tinha alguém em casa de quem eu tinha de cuidar, sabia que já não ia ser mais uma criança, apesar de ter a idade de criança. Tinha alguém em casa para alimentar. Também tive ajuda de muita gente, dos meus sogros, dos meus pais. Muita ajuda. Foram muito importantes em todo o processo. Não foi fácil ele ter nascido, mas foi importante para a carreira que eu desenvolvi", descreveu.
E Gustavo Varela não tem dúvidas: "Foi uma luta ganha." O jovem de 19 anos reconhece o esforço do pai e tenta retribuir com dedicação e trabalho árduo. "Compensou totalmente aquilo que ele fez por mim. Sou muito grato. Eu sei que foi um bocadinho difícil e, por isso, tento sempre orgulhar o meu pai, dar tudo por ele, e pela minha família também. E, no fundo, eu sei que, no futebol, tenho de dar o meu máximo, e quero ganhar, porque sei que ele lutou por mim, e é isso que tento fazer", garantiu, prosseguindo: "Não quero que eles tenham lutado em vão. Quero ser alguém na vida e provar-lhes que eles lutaram por alguma razão."
Para Fernando Varela, a verdadeira mensagem que pretende passar de pai para filho não é sobre a necessidade de provar algo aos pais, mas a si mesmo.
"Mais do que provar a nós, tem de trabalhar todos os dias para lutar contra ele mesmo. Porque sabemos que esta profissão não é fácil. E, mais do que lutar contra os teus adversários, mais do que lutar contra os teus colegas durante o treino, tens de te motivar a ti próprio todos os dias. É contigo com que tu lutas todos os dias. Para acordar de manhã, para teres motivação para ir treinar. E é isso que eu quero que ele tenha sempre. Que lute sempre contra ele, contra o ímpeto daquele dia preguiçoso que às vezes temos dentro de nós e que pode aparecer a qualquer momento. É nesses momentos que tem de lutar e de ser forte. E, mais do que tudo, que consiga as coisas por ele. O que tem construído até agora é com o nosso suporte, mas tudo graças ao trabalho dele, dentro e fora de campo. Quando tu vês isso acontecer, não é à toa que ele está onde está", refletiu.
O LEGADO DE UM NOME
Mais jovem, Gustavo era algo resistente às críticas e orientações do pai – por mais que aquelas palavras fossem reflexo de amor e experiência. Hoje, compreende-as e passou a encará-las sob um novo olhar.
"Quando era mais novo, depois de jogos e de treinos mais difíceis, eu não conseguia logo aceitar a mensagem que o meu pai me transmitia, mas depois, passados alguns dias, ia aceitando. Agora, que já sou mais velho, assim que acabam os jogos, eu mando logo uma mensagem a perguntar o que é que eu podia ter feito melhor, onde é que eu posso melhorar. É uma grande ajuda que eu tenho, e só posso ser grato", relevou Gustavo, que Fernando espera que leve o apelido da família por todo o lado.
"Quando eu deixar [os relvados], vai ser ele a seguir o nosso legado, a transportar o nome Varela pelo mundo fora, e espero que o faça bem. Que as pessoas o vejam mais como um bom jogador, como um bom-caráter e um bom profissional. É isso que eu tento sempre passar. Mais do que ser bom jogador, tem de ser bom-caráter e bom profissional, porque, no fim, é isso que vai valer a pena", enfatizou o pai.
O maior exemplo, para Gustavo, está em casa e provém do seu "maior crítico e maior fã". "Sempre que fazemos alguma coisa errada, penso logo que o meu pai fez isto, fá-lo-á desta forma… É isso que me vem à cabeça. Quando, por exemplo, falto a algum dia de ginásio, eu penso logo 'ai, o meu pai fazia tudo certinho, fazia tudo da melhor forma'. Eu tento sempre representar essa imagem e dar o meu melhor", disse, referindo-se à relação com o seu progenitor, que vê como um modelo de disciplina e compromisso.
"MELHOR CONQUISTA" EM DÉCADAS DE CARREIRA
Fernando Varela reconhece que ter tido a oportunidade de jogar contra o seu filho foi o grande prémio da sua carreira.
"Hoje [domingo, 10 de novembro], para mim, foi a minha melhor conquista. Estava longe de pensar que isto ia acontecer. Todos os títulos que ganhei, individuais e coletivos, não se comparam ao que aconteceu aqui hoje para mim. Vai ficar marcado para o resto da minha vida. Vai ficar eternizado. Vou guardar para sempre no meu coração. Hoje ainda posso falar nisso, mas, se calhar, daqui a uns anos, quando olhar para este dia, vou sentir-me bastante orgulhoso em poder contar aos meus netos. Vai ser espetacular", contou.
Para Gustavo Varela, que dá os primeiros passos no mundo do futebol profissional, foi um começo perfeito. "Acho que é um início de carreira que ninguém tem na cabeça. Jogar contra um familiar, contra o seu próprio pai…. É uma coisa com a qual eu tenho de estar muito orgulhoso, tenho de agradecer ao meu pai por tudo o que fez. Agora é continuar a lutar para tentar fazer melhor ou igual ao que o meu pai deixou no futebol e que fez", afirmou.
ANDREIA VARELA, A IMPULSIONADORA DO DUELO
Nas bancadas do Campo n.º 1 do Benfica Campus, com uma camisola personalizada – metade com as cores do Alverca, metade com as cores do Benfica –, estava Andreia Varela, mulher de Fernando e mãe de Gustavo. Dividida, confessou-se a principal responsável pela realização deste duelo.
"Fui uma das principais causas de o pai também vir para a II Liga, para poder 'apanhar' o filho. Acho que é uma coisa inédita. Por aquilo que sabemos, nunca aconteceu em ligas profissionais", destacou a mãe de Gustavo Varela, a quem o filho deixou palavras de gratidão.
"A minha mãe, no fundo, faz o trabalho que ninguém vê, que ninguém percebe, que ninguém dá conta. E é o trabalho mais importante, que nos puxa e nos motiva sempre, todos os dias", valorizou Gustavo.
"Tenho a agradecer também ao Benfica e ao Alverca por nos terem ajudado e nos terem deixado concretizar algo que determina um – quase – fim de carreira e um início de carreira muito bons", afirmou o jovem futebolista.
Ao ouvir-se o apito final, o marcador indicava a vitória do filho – e do Benfica B –, mas havia outra história dentro do jogo. Ao deixarem o campo, pai e filho caminharam abraçados lado a lado, tiraram fotografias, e a vida prossegue fora das quatro linhas e dentro de quatro paredes, tal como nos últimos 19 anos. O nome Varela seguirá, agora, nas chuteiras de Gustavo, que promete transportar esse legado com o mesmo orgulho e dedicação com que Fernando o fez ao longo de décadas de carreira.